FRAGMENTOS DE UM PENSAMENTO AMOROSO

Podia ter sido irmã gémea da máxima de Descartes: “Amo logo existo”. Ou: “Existo porque amo”. Ou ainda “Amo e existo ao mesmo tempo”. Mas não. O amor foi um passageiro clandestino na bagagem dos filósofos. “Quase um terreno baldio”, chegam a afirmar Aude Lancelin, 37 anos, e Marie Lemonnier, 36 anos, duas jornalistas do NouvelObservateur, na introdução a Os Filósofos e o Amor, livro em que tentam deslindar as relações entre pensamento e sentimento amoroso.
O resultado são fragmentos de vida e escritos avulsos ou sistemáticos que levantam o véu a um tema que nem sempre foi tabu, embora incómodo em todas as situações. Pois a força do amor chegou até a importunar uma figura tão racional e metódica como Kant, que apesar da sua castidade, desabafou a certa altura que “quando eu poderia ter sentido necessidade de ter uma mulher, não podia alimentar nenhuma, quando passei a poder alimentar uma mulher, já não tinha necessidade dela”. Faltou-lhe a oportunidade. E não é caso único ver um filósofo que, não falando de experiência própria, procura falar da experiência do amor, como também fez Kierkegaard, através da sua atormentada renúncia à vida conjugal. Foram estes assombros biográficos e intelectuais que incentivaram Aude Lancelin e Marie Lemonnier, ambas com formação em Filosofia, a avançar para esta investigação. Sabiam, à partida, que sendo “condição sine qua non para a felicidade da maior parte dos seres humanos, motivo imperecível para qualquer drama literário, o amor é abordado pelos filósofos com a prudência de quem entra na jaula de uma fera correndo o risco de ser imediatamente devorado”. No entanto, um estudo inicial que Aude Lancelin fez sobre Jean-Jacques Rousseau mostrou -lhe que os filósofos “à sua maneira desajeitada ou fanfarra, frequentemente lancinante, por meio até de uma animosidade feroz que se manifesta mesmo entre alguns, todos falaram do amor de um modo decisivo”. Uns mais do que outros, obviamente, embora “todos eles, na verdade, têm qualquer coisa a dizer-nos acerca do amor, da ilusão de eternidade que ele procura, do sofrimento que ele engendra e do modo como podemos tentar dominar esse sofrimento”. O livro afirma-se assim em três níveis: apresentação das linhas de força das obras dos filósofos, a respectiva interpretação e a referência a dados biográficos. De resto, é na alternância destes três registos que esta obra se torna uma leitura compulsiva, por vezes irónica, outras vezes luminosa. Ao lê-la sentimo-nos num barco que navega pelos admiráveis oceanos da Filosofia. E que os pensadores aqui incluídos - Platão, Lucrécio, Montaigne. Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Arthur Schopenhauer, Soren Kierkegaard, Friedrich Nietzche, Martin Heidegger, Hannah Arendt, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir - são colossos da cultura Ocidental (o critério geográfico é assumido pelas autoras, que não quiseram aventurar-se por outras concepções filosóficas). E em alguns casos, quer pela existência que levaram, quer pelas relações que mantiveram (como Heidegger e Arendt e Sartre e Beauvoir) são perfeitos exemplos de uma praxis amorosa.
Mal o caminho do pensamento sobre o Amor começa a ser traçado, na antiguidade grega, abrem-se logo duas vias. São dois momentos que se distinguem claramente e que têm em PIatão e Lucrécio os seus principais mentores. Aude Lancelin e Marie Lemonnier esclarecem-nos: “De um lado, a magia branca do amor, do outro, a sua magia negra. De um lado, a ideia de que aquilo que é vivido durante uma hora ou ao longo de 20 anos tem como ponto de fuga a eternidade. Do outro, a de que há nisso um bruxedo atroz que só pode conduzir ao desastre e que deve portanto, ser obrigatoriamente erradicado”.
Deste dois polos vão aproximar-se ou afastar-se os filósofos que se seguem e que de certa maneira acompanham o curso da História da Filosofia dos últimos séculos. Montaigne e a infinita necessidade de amar, mesmo se fora do casamento, porém com moderação. Rousseau e o seu romantismo exacerbado e ameaçado pelos males da sociedade. Kant e o seu racionalismo, segundo o qual o sexo é um mal necessário, na medida em que o ascetismo levaria à extinção da espécie. Schopenhauer e o seu pessimismo militante, que o faz defender a poligamia. Kierkegaard e a solidão voluntária, em busca de um amor sublime capaz de resgatar as ideias ancestrais de belo. Nietzsche e a volúpia do poder, que se subjuga às leis do desejo numa guerra contínua. E os pares amorosos já referidos, como duas faces de uma mesma moeda, a fidelidade e a infidelidade, que se unem na necessidade do amor. Nas margens, encontramos mães ausentes ou castradoras, amores impossíveis ou frívolos, confissões e arrependimentos, monumentos filosóficos que procuram compreender, como lembra Eduardo Lourenço no prefácio, aquele fogo que arde sem se ver. Esse amor camoniano tão natural como o pensamento. Porque, como se concluiu no Banquete, de Platão, e lembram Aude Lancelin e Marie Lemonnier, “aquele que não deseja nem ama não é já de facto um homem”.
LUÍS RICARDO DUARTE, Jornal de Letras, Ano XXX, nº 1040, p.36.